Provocações para o debate acerca do projeto de Reforma Tributária Municipal
Por Marcos Pires, Sócio-fundador do escritório Torres e Pires Advogados Associados
Em 14 de março de 2013, foi encaminhado para a Câmara Municipal o Projeto de Lei n. 160/13, de iniciativa do Prefeito, contemplando ampla reforma tributária, sob as anunciadas premissas “de não criar novos tributos, não ampliar as alíquotas existentes, reduzir a carga tributária e desburocratizar”, propiciando “as condições para a modernização e o aperfeiçoamento da Administração Tributária favorecendo o incremento das receitas tributárias e não tributárias e a ampliação da capacidade de investimento do Município”.
Indispensável, por certo, a adoção de medidas legislativas e administrativas para que o Município do Salvador aufira receitas suficientes para a prestação de serviços públicos de maneira adequada e para a conservação e o melhoramento dos diversos equipamentos públicos da cidade.
Entretanto, inócua será a reforma tributária municipal se não forem implementadas políticas de incentivo às empresas (da microempresa à empresa de grande porte), para desenvolvimento da economia soteropolitana e consequente geração de riqueza.
Sem atividade econômica não há riqueza e sem riqueza não há o que se tributar. Sob essa perspectiva, merecem amplo debate alguns pontos do projeto de lei que ora tramita na Câmara de Vereadores.
O primeiro ponto a se discutir é a disciplina normativa do proposto Cadastro Informativo Municipal, que, a exemplo do Cadastro Informativo de créditos não quitados do setor público federal (Cadin) – regulado pela Lei n. 10.522/2002 – tem o objetivo de consolidar pendências de pessoas físicas e jurídicas perante a Administração Direta e Indireta do Município do Salvador, como “obrigações pecuniárias vencidas e não pagas” e “ausência de prestação de contas, exigível em razão de disposição legal ou cláusulas de convênio, acordo ou contrato”.
A criação do Cadin Municipal é importante providência de controle de créditos e de prestações de contas, aperfeiçoando o sistema de registro e publicidade das diversas pendências perante a Municipalidade.
Se por um lado revelam-se adequadas, quando apurado registro no Cadin Municipal, as restrições de celebração de convênios, acordos, ajustes ou contratos que envolvam o desembolso, a qualquer título, de recursos financeiros, de concessão de auxílios e subvenções, e de incentivos fiscais e financeiros, o Projeto de Lei n. 160/13 extrapola os limites de legitimidade quando estipula retenção de pagamentos oriundos de contrato administrativo firmado com pessoa física ou jurídica que tenha pendência registrada no aludido cadastro e também quando veda a expedição de alvarás de licença, de autorização especial, ou de quaisquer outros tipos de alvarás, licenças ou autorizações decorrentes ou não do Poder de Polícia Municipal.
Ainda que o particular tenha a obrigação de manter, durante a execução do contrato, todas as condições de habilitação e qualificação exigidas na licitação, inclusive a sua regularidade fiscal, não pode a administração reter pagamento devido em virtude de efetivo fornecimento de mercadorias ou de efetiva prestação de serviços pelo contratado.
Diante da irregularidade fiscal do particular contratado, a administração não apenas pode como deve rescindir unilateralmente o contrato, aplicando as penalidades estipuladas pelo art. 87 da Lei n. 8.666/93 (advertência, multa, suspensão temporária de participação em licitação e impedimento de contratar com a Administração, por prazo não superior a dois anos; declaração de inidoneidade para licitar ou contratar com a Administração Pública).
A exigência de regularidade fiscal é modo de aferir-se a idoneidade do particular que pretende contratar com a Administração Pública, não servindo – ao menos, não legitimamente – como instrumento indireto de cobrança de tributos.
Assim, absolutamente insubsistente a proposta de que o registro de pendência no Cadin Municipal autorize a retenção de pagamentos para o particular que já adimpliu a sua obrigação contratual principal (fornecer produtos ou prestar serviços), o que caracterizaria verdadeiro enriquecimento ilícito do Município do Salvador em prejuízo do contratado que, sem os recursos financeiros que lhe são devidos pela execução do contrato, teria seu estado de insolvência agravado, comprometendo não somente o adimplemento de suas obrigações tributárias, mas também das dívidas trabalhistas, comerciais e bancárias, inviabilizando, destarte, a própria continuidade da atividade empresarial do particular.
Demais disso, não seria legítimo obstar, quando constatado o registro de pendência no Cadin Municipal, a expedição de alvarás de licença, de autorização especial, ou de quaisquer outros tipos de alvarás, licenças ou autorizações decorrentes ou não do Poder de Polícia Municipal.
São exigidas do particular diversas licenças e autorizações, através das quais a Administração Pública, “limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos” (conceito extraído do art. 78 do Código Tributário Nacional).
Por exemplo, depende de alvará de licença, conforme o art. 8°, inciso I, do Código de Polícia Administrativa do Município do Salvador, o “funcionamento de estabelecimento comercial, industrial, de crédito, seguro, capitalização, religioso, de prestação de serviço de qualquer natureza, profissional ou não, e as empresas em geral”, para o que a Administração Municipal, de acordo com o §1° do dispositivo legal acima aludido, analisará a viabilidade “da localização do estabelecimento e/ou equipamento e do exercício da atividade a ele atinente, bem como as implicações relativas à estética, higiene, limpeza pública e segurança, ao transito, ao impacto ambiental e a conformidade com a Lei do Uso e Ocupação do Solo”.
Confirmada a viabilidade da localização do estabelecimento e atestada a sua conformidade às normas administrativas constantes do Código de Polícia Administrativa relativas à higiene, poluição do meio ambiente, costumes, ordem, tranquilidade e segurança pública, impõe-se a expedição do respectivo alvará de funcionamento, oportunizando o pleno exercício da atividade empresarial.
Legítima a cobrança de taxa (Taxa de Fiscalização do Funcionamento – TFF) para a expedição do alvará de funcionamento, mas peremptoriamente abusivo o condicionamento da expedição do referido alvará (ou de qualquer outra licença ou autorização municipal) à prova de inexistência de registro no Cadin Municipal, pois caracterizado também estaria como meio indireto de cobrança de tributos.
Outro ponto relevante que exige debate é o novo Parcelamento Administrativo de Débitos Tributários – PAT.
Há de se reconhecer que o Projeto de Lei n. 160/13 aperfeiçoa a sistemática de parcelamento administrativo de débitos tributários municipais, estipulando, como regra, o débito automático das parcelas em conta bancária do contribuinte, além de aumentar o número máximo de parcelas (de 48 para 60 prestações mensais).
Mas a disciplina do PAT prevista no Projeto de Lei n. 160/13 incorre em dois graves vícios que certamente não passarão incólumes pela Câmara de Vereadores.
O art. 11-B constante do projeto de lei ora examinado objetiva estender ao titular da firma individual e aos sócios das empresas por cotas de responsabilidade limitada a responsabilidade solidária, “com seus bens pessoais” em relação aos débitos incluídos no PAT, acrescentando o seu parágrafo único que os acionistas controladores, os administradores, os gerentes e os diretores também respondem solidariamente e subsidiariamente, “com seus bens pessoais”, quanto ao inadimplemento das obrigações incluídas no PAT.
De acordo com a proposta do Poder Executivo Municipal, bastaria que fosse inadimplido o parcelamento para que todos se responsabilizassem pessoalmente pelos débitos parcelados, não importando se a pessoa era sócia ou acionista no momento da ocorrência dos fatores geradores dos tributos parcelados, se exercia a administração da sociedade empresarial ou se os débitos parcelados eram resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatuto.
Tratar-se-ia de responsabilização tributária de terceiros (sócios, acionistas, administradores, gerentes, diretores, etc.) decorrente única e exclusivamente do inadimplemento da obrigação tributária, sem observar os requisitos elencados pelos artigos 134 e 135 do Código Tributário Nacional, e, por consequência, responsabilização ilegítima, conforme reiteradamente decido pelo Superior Tribunal de Justiça.
Insubsistente também o art. 11-D e o §3° do art. 76-A (que o Projeto de Lei n. 160/13 intenta acrescer ao Código Tributário e de Rendas do Município do Salvador) ao estipularem que o Certificado de Quitação de ISS – Habite-se (novo documento “destinado a homologar a regularidade do pagamento do ISS” dos serviços de execução de obra de construção civil, demolição, reparação, conservação ou reforma de imóveis em geral) somente seria “expedido com o pagamento integral do referido acordo de parcelamento”.
O parcelamento é causa de suspensão da exigibilidade do crédito tributário – propiciando ao devedor, inclusive, a prova de regularidade fiscal, consoante o art. 206 do CTN – não se justificando a adoção de qualquer medida restritiva contra aquele que, reconhecendo a sua dívida e buscando manter-se adimplente, promove o parcelamento dos seus débitos.
Mais grave a mácula do Projeto de Lei n. 160/13 quando pretende condicionar o alvará de habite-se e o pagamento de obras contratadas à expedição do Certificado de Quitação de ISS – Habite-se e, portanto, ao “pagamento integral do referido acordo de parcelamento”.
Se, sob o ângulo jurídico, a negativa de Certificado de Quitação de ISS – Habite-se quando existentes apenas débitos parcelados (e, destarte, inexigíveis) é claramente ilegítima, sob a perspectiva lógica tal proposta se revela carente de qualquer razoabilidade.
Decerto, não aproveitaria ao construtor o parcelamento de débitos de ISS, pois se postergaria pelo prazo de vigência do parcelamento (até 60 meses) a expedição do alvará de habite-se, impedindo a entrega da(s) unidade(s) construída(s) e obstando, desse modo, o recebimento pelo construtor da prestação principal do preço do seu serviço.
Não se permitindo, como acima abordado, a retenção de pagamento ao particular contratado sob a alegação de débitos tributários vencidos e exigíveis perante o ente público contratante, mostra-se ainda mais viciada a pretendida retenção de pagamento quando constatados somente débitos parcelados (inexigíveis).
Para tornar mais efetivo o parcelamento de débitos tributários municipais, ao invés de adotar medidas espúrias contra o devedor que parcelou a sua dívida e que se encontra adimplente em relação às prestações ajustadas, a Administração Tributária Municipal pode e deve estabelecer como regra o débito automático das parcelas avençadas e exigir garantia bancária ou hipotecária para o parcelamento de grandes débitos, como previsto no próprio Projeto de Lei n. 160/13, além de restringir novos parcelamentos ou impor condições mais rígidas (ex.: imposição de pagamento de 10% a 20% a título de primeira parcela) para aqueles devedores que inadimplirem parcelamentos anteriores.
Mais uma questão digna de acurado exame é a tentativa do Poder Executivo Municipal de voltar a exigir o ISS sobre a atividade de incorporação imobiliária quando houver “comercialização das unidades imobiliárias antes da conclusão da obra”, através do acréscimo do art. 86-A ao CTRMS.
O enunciado do art. 86-A afronta a posição consolidada do Superior Tribunal de Justiça de que: “Na construção pelo regime de contratação direta, há um contrato de promessa de compra e venda firmado entre o construtor/incorporador (que é o proprietário do terreno) e o adquirente de cada unidade autônoma. Nessa modalidade, não há prestação de serviço, pois o que se contrata é ‘a entrega da unidade a prazo e preços certos, determinados ou determináveis’ (art. 43 da Lei 4.591/64). Assim, descaracterizada a prestação de serviço, não há falar em incidência de ISS” (STJ, S1, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, EREsp 884778/MT, DJe 05/10/2010).
Além de afrontar jurisprudência pacificada, a proposta de cobrar o ISS sobre a incorporação de imóveis desprestigia importante setor da economia soteropolitana, provocando insegurança jurídica para a consecução de novos empreendimentos imobiliários, o que repele a geração de riqueza no Município do Salvador, e reduz, por conseguinte, num círculo vicioso, a base de tributação municipal.
Sempre com o melhor dos propósitos, o Projeto de Lei n. 160/13 lança novos critérios para definição de “sociedade profissional”, restringido a sistemática de alíquotas fixas do ISS, além das condições estabelecidas pelo Decreto-lei 406/1968.
O projeto de Reforma Tributária Municipal inova ao afastar a tributação fixa e simplificada de sociedades profissionais que explorem mais de uma atividade de prestação de serviços (ex.: sociedades que prestam conjuntamente os serviços de medicina e psicologia, ou engenharia e arquitetura), que sejam sócias de outra sociedade, que não tenham sócios que delas participem apenas para aportar capital ou administrar, que não terceirizem ou não repassem a terceiros os serviços relacionados à atividade da sociedade (ex.: escritório de advocacia contratado para prestar serviços de advocacia empresarial que subcontrata, parcialmente, outro escritório para execução de advocacia trabalhista), que não sejam filiais, sucursais, agências, escritórios de representação ou contato (!) de qualquer outro estabelecimento descentralizado ou relacionado a sociedade sediada no exterior, ou ainda que assumam caráter empresarial, em função de sua estrutura ou da forma de prestação dos serviços.
O elenco de requisitos novos, imprecisos e sem fundamento de norma geral (art. 9° do Decreto-lei 406/1968) transfere ao fisco soteropolitano o ilegítimo poder de descaracterizar arbitrária e casuisticamente a sociedade profissional, surpreendendo-a com a cobrança do ISS sobre a receita bruta (com todos os elevados encargos legais), o que obstaria, decerto, a continuidade regular da atividade de tantas sociedades profissionais de engenheiros, médicos, contadores, arquitetos, advogados, odontólogos, etc.
Por fim, ressalte-se a disposição do art. 115 do Projeto de Lei n. 160/13 que autorizaria a Fazenda Pública Municipal a promover o protesto dos créditos tributários ou não por falta de pagamento, medida controversa especialmente quando se depara com o entendimento do STJ de que a dívida ativa tributária submete-se a disciplina própria e preferencial (CTN e Lei de Execuções Fiscais), não se justificando, quanto à dívida tributária, a restrição característica dos títulos comerciais inadimplidos.
O debate sobre a Reforma Tributária Municipal não se exaure com a abordagem desses importantes porém reduzidos tópicos. Muito mais há que se discutir sobre o Programa Nota Salvador, a Renegociação de Débitos “mediante realização de oferta pública de recursos a credores”, a nova disciplina dos depósitos judiciais e administrativos, as novas e diversas obrigações acessórias que redefinirão a forma do sujeito passivo tributário se relacionar com o fisco soteropolitano (e vice-versa) e o processo eletrônico, entre outros pontos relevantíssimos.
Fundamental que todos se manifestem, apresentem suas críticas e sugestões para que o Município do Salvador alcance sim a modernização e o aperfeiçoamento da Administração Fiscal, mas respeitando sempre os direitos fundamentais dos seus cidadãos contribuintes e fortalecendo os setores produtivos que desenvolvem a economia e produzem a riqueza municipal. Fonte:Torres e Pires – Advogados Associados