201808.11
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Inidoneidade do fornecedor e direito ao crédito do ICMS de adquirente de boa-fé

Noções propedêuticas: não cumulatividade do ICMS e o direito creditório

Nos exatos termos do art. 155, inciso II, da Constituição Federal, o ICMS é um imposto de competência dos Estados e Distrito Federal, que, dentre outras materialidades, incide sobre operações relativas à circulação de mercadorias, inclusive aquelas que tenham sido iniciadas no exterior.

Conforme o comando constitucional, o imposto é não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal.

Ainda de acordo com o texto constitucional, a isenção ou não-incidência, salvo determinação em contrário da legislação, não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes, bem como acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores.

Ao regular infraconstitucionalmente a sistemática, o caput do artigo 23 da Lei Complementar nº 87/96 (“Lei Kandir”) estabelece que o direito de crédito, para efeito de compensação com débito do imposto, está condicionado à idoneidade da documentação e, se for o caso, à escrituração nos prazos e condições estabelecidos na legislação.

No âmbito da legislação paulista, o artigo 59 do Decreto nº 45.490/00 (“RICMS/SP”) preceitua que o imposto é não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação ou prestação com o anteriormente cobrado por este ou outro Estado, relativamente à mercadoria entrada ou à prestação de serviço recebida, acompanhada de documento fiscal hábil, emitido por contribuinte em situação regular perante o fisco.

Na sequência, os parágrafos do dispositivo esclarecem que documento fiscal hábil é aquele que atenda a todas as exigências da legislação pertinente, seja emitido por contribuinte em situação regular perante o fisco e esteja acompanhado, quando exigido, de comprovante do recolhimento do imposto.

Por sua vez, encontra-se em situação regular perante o fisco, o contribuinte que, à data da operação ou prestação, esteja inscrito na repartição fiscal competente, encontre-se em atividade no local indicado e possibilite a comprovação da autenticidade dos demais dados cadastrais apontados ao fisco.

Frente aos citados dispositivos, para que o direito creditório do adquirente seja plenamente exercido é necessário que: (i) à época da operação, o seu fornecedor esteja regularmente inscrito na repartição fiscal competente e em plena atividade no local indicado; (ii) seja possível averiguar e comprovar a autenticidade dos demais dados cadastrais do fornecedor apontados ao Fisco; (iii) o documento fiscal emitido pelo fornecedor seja hábil, isto é, atenda a todas as exigências da legislação pertinente, e, quando exigido, esteja acompanhado de comprovante do recolhimento do imposto.

Nesse contexto, é comum que, após longos procedimentos fiscalizatórios, o Fisco Paulista constate que o estabelecimento fornecedor (localizado em São Paulo ou em outras unidades da federação) agia de má-fé, muitas vezes com o propósito de gerar “créditos frios” de ICMS a estabelecimentos localizados em São Paulo.

Tal constatação se dá pela reunião de diversos fatores, tais como: a inexistência do estabelecimento no local indicado; a não localização dos sócios; a simulação de operações de vendas, etc. Todas essas verificações são reunidas e utilizadas pelo Fisco para lavrar termo de declaração de simulação ou inidoneidade do estabelecimento fornecedor.

Uma das consequências do reconhecimento da inidoneidade é a glosa retroativa dos créditos do imposto apropriados com base em documentos fiscais emitidos pelo estabelecimento que fora declarado inidôneo. Isto é, as pessoas jurídicas que praticaram, no presente e no passado, transações comerciais com o estabelecimento tido por inidôneo são diretamente atingidas.

Diante disso, pergunta-se: como o adquirente deve agir para se resguardar de autuações lavradas pelo Fisco Paulista que glosam o seu crédito de ICMS sob o fundamento de que o fornecedor das mercadorias e/ou os documentos por ele emitidos foram posteriormente declarados inábeis?

É o que buscaremos responder a seguir a partir da análise de algumas manifestações exaradas pelo TIT/SP nos últimos anos sobre a matéria.

Da Jurisprudência do Tribunal de Impostos e Taxas de São Paulo (TIT/SP)

De fato, o tema ora em estudo ocupa há muito tempo os tribunais administrativos e judiciais. Comecemos esse tópico com breve exame da jurisprudência consolidada pela Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça (“STJ”), na medida em que ela impacta diretamente na análise do entendimento formado pelo TIT/SP sobre a matéria.

Com efeito, a Primeira Seção do STJ já havia fixado em 2010, sob o rito dos recursos repetitivosi, que o comerciante de boa-fé que adquire mercadoria, cuja Nota Fiscal posteriormente seja declarada inidônea, pode aproveitar o crédito do ICMS pelo princípio da não-cumulatividade, desde que demonstrada a veracidade da compra e venda efetuada, porquanto o ato declaratório da inidoneidade somente produz efeitos a partir de sua publicação.

Ademais, ficou consignado em referido julgado que a responsabilidade do adquirente de boa-fé reside na exigência, no momento da celebração do negócio jurídico, da documentação pertinente à assunção da regularidade do alienante, cuja verificação de idoneidade incumbe ao Fisco.

Já em 2014, o acórdão proferido em referido Recurso Especial em conjunto com outros exarados pelo STJ fundamentaram a edição da Súmula nº 509, de 2014, segundo a qual: “É lícito ao comerciante de boa-fé aproveitar os créditos de ICMS decorrentes de nota fiscal posteriormente declarada inidônea, quando demonstrada a veracidade da compra e venda”.

Na esfera administrativa, a Câmara Superior do TIT/SP realizou sessão monotemática sobre a matéria em 29.05.2012, justamente com o objetivo de alinhar o seu posicionamento ao do STJ. Nessa sessãoii, chegou-se ao consenso quanto aos pressupostos mínimos para que se reconheça a boa-fé do comercianteiii, quais sejam:

  1. Declaração de inidoneidade posterior à celebração do negócio jurídico e consequente emissão das notas fiscais e creditamento do ICMS;

  2. Comprovação da realização da compra e venda;

  3. Demonstração inequívoca de que o adquirente verificou, à época das operações, a regularidade fiscal do fornecedor; e

  4. Existência de prova de que houve pagamento à empresa cujas notas fiscais foram declaradas inidôneas.

Algumas recentes decisões de Câmaras Ordinárias do TIT/SP reiteram o entendimento que foi consolidado pela supracitada sessão monotemática e cancelaram autos de infração lavrados, reconhecendo, assim a boa-fé do adquirente e, outrossim, a real ocorrência da operação de compra e venda.

Em sessão de 20.04.2017, a 3ª Câmara Julgadora, sob relatoria da juíza Michele Volponi dos Santos Markusiv, decidiu que “não é usual supor que contribuintes tenham condições de diligenciar, de forma minuciosa, junto a cada um dos seus fornecedores. Assim, parece óbvio que os cuidados exigíveis se cingem, somente, aqueles de mínimo zelo, ínsitos ao conceito-tipo de empresário”.

Em conclusão, a 3ª Câmara estabeleceu que: “desde que comprovada a materialidade das operações, bem como os atos mínimos para apurar a regularidade fiscal da outra parte, mediante comprovação inequívoca, é de se supor, salvo contraprova fazendária, que o tomador dos créditos agiu de boa-fé”.

Por sua vez, a 11ª Câmara de Julgamento, em sessão 14.10.2016, seguindo o voto de preferência do juiz Paulo Victor Vieira da Rochav, entendeu que “tudo se trata de provar ou não a ocorrência das operações, afastando-se, assim a presunção de que o adquirente praticou operações simuladas”.

Para arrematar seu voto de preferência, Paulo Victor aponta que: “o que o Egrégio STJ, a rigor, fixou em sua jurisprudência, é que a condição para a manutenção dos créditos pelo adquirente é prova efetiva das operações, o que, a meu sentir, de fato ocorreu no caso e, diga-se de passagem, de maneira muito robusta”.

Já a 6ª Câmara de Julgamento, em sessão realizada em 31.05.2016, sob relatoria de José Orivaldo Peres Júniorvi, decidiu que: “Não se pode exigir do contribuinte que verifique in loco se a empresa com quem está negociando realmente encontra-se no endereço informado ao fisco. Cabe ao contribuinte verificar a regularidade do seu fornecedor perante os órgãos competentes, como o SINTEGRA, o que ocorre no presente caso”.

Por último, a 2ª Câmara de Julgamento, em sessão de 24.09.2015, sob relatoria de Eduardo Soares de Melovii, ponderou que o principal meio de prova para atestar a boa-fé do adquirente, para fins de legitimação do crédito do ICMS, se dá pela comprovação do efetivo pagamento.

Considerações Finais

Das decisões expedidas pelo TIT/SP cotejadas acima, conclui-se que não é razoável exigir que os contribuintes diligenciem de forma minuciosa junto a cada um dos seus fornecedores. Pelo contrário, cabe a ele apenas os cuidados razoáveis e esperados, como a verificação da regularidade do seu fornecedor perante os órgãos competentes, como o Sintegra, por exemplo.

Além disso, desde que comprovada a materialidade das operações e dos pagamentos feitos, é de se supor, salvo contraprova fazendária, que o tomador dos créditos agiu de boa-fé. Qualquer exigência do Fisco superior a isso não pode ser aceita, sob pena de afronta ao próprio princípio da não cumulatividade do ICMS.

Fonte: JOTA