Incorporador e Consumidor – Os limites dessa relação no contrato imobiliário
Por Larisse Oliveira, advogada do Escritório Torres e Pires Advogados Associados
O mercado imobiliário na Bahia vive um momento de desaceleração, em contraste com o boom que marcou a última década. Embora não se possa afirmar que já estejamos em um cenário de crise, começam a despontar sinais de que algo não vai bem no relacionamento entre incorporadores e adquirentes. Isso é bem refletido na multiplicação de ações judiciais que discutem aspectos negociais do contrato de compra e venda de bem imóvel por incorporação.
Assim, procuramos sistematizar uma análise do contrato de compra e venda de bem imóvel, sob a ótica da defesa do consumidor, com destaque para o entendimento jurisprudencial acerca da existência ou não de abusividade em determinadas cláusulas contratuais e condutas comuns do fornecedor.
O contrato de promessa de compra e venda de imóvel será classificado como contrato de consumo, especialmente, quando figurar como promitente vendedor o incorporador(1) ou parte que tenha como atividade habitual a compra e venda de imóveis. Por outro lado, nos casos de contratos de compra e venda de imóveis nos quais as partes contratantes não exerçam atividade profissional no ramo imobiliário, estando a figurar eventualmente como fornecedor do bem, não se cogitará a existência de relação de consumo, de modo que o contrato será tutelado pela legislação civil.
As transações de compra e venda de imóveis em regime de incorporação possuem importante função social por incentivar o acesso à moradia. A aquisição imobiliária nessa modalidade, geralmente, é realizada por preço inferior às negociações com imóveis já prontos. Ademais, não se deve olvidar a importância social da atividade de incorporação sob a ótica da geração de empregos, recolhimento de tributos e movimentação da economia de um modo geral.
Trata-se, ainda, de uma atividade em que a venda do bem não pode ser isoladamente considerada, ao passo em que a construção das unidades é realizada em conjunto, gerando consequências para uma coletividade de adquirentes. Não é possível, por exemplo, que um apartamento fique pronto no prazo, enquanto outra unidade do mesmo empreendimento, cujo adquirente esteja inadimplente, seja também construída com mora.
Assim, consideradas as peculiaridades da incorporação imobiliária, a proteção assegurada ao consumidor pelo microssistema das normas de defesa do consumidor, deve ser analisada em cotejo com o regramento próprio de referida atividade, sob pena de ser inviabilizada a atividade, em prejuízo a uma coletividade de consumidores.
A legislação consumeirista proíbe a inserção de cláusulas contratuais abusivas, visando a proteção do consumidor vulnerável, mediante normas cogentes que visam o reequilíbrio das partes. Em linhas gerais, entendem-se abusivas as cláusulas que coloquem o fornecedor em situação de vantagem, transferindo riscos ao consumidor, de modo a acentuar o desequilíbrio contratual.
Dito isto, vamos passar a uma análise das cláusulas comuns nos contratos de promessa de compra e venda de bens imóveis e condutas frequentes dos fornecedores de unidade imobiliária em fase de incorporação.
Cobrança de juros antes da entrega das chaves
Discute-se a existência ou não de abusividade na cláusula do contrato de promessa de compra e venda de bem imóvel que estabelece a cobrança de juros antes da entrega do bem, ou seja, nas parcelas pagas durante a construção da unidade imobiliária. Tratam-se dos chamados juros no pé, conforme expressão utilizada no mercado imobiliário e presente em julgados do STJ, oriunda do fato de que o imóvel ainda não está pronto, de modo que são cobrados juros com o imóvel na planta, no chão, no pé.
Na jurisprudência do STJ, prevalece o entendimento de que não é abusiva a cobrança dos juros antes da entrega do imóvel, conforme consolidação do entendimento da Segunda Seção no julgamento dos Embargos de Divergência no Recurso Especial, número 670.117/PB.
Aqueles que discordam da cobrança dos juros no pé argumentam que não cabe a incidência de juros remuneratório por inexistir financiamento ou “valor emprestado”, que justifique a remuneração de capital. Nesse sentido foi editada a Portaria nº 03/2001, da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, que estabeleceu em seu item 14 a abusividade da cláusula que “estabeleça, no contrato de venda e compra de imóvel, a incidência de juros antes da entrega das chaves”.
Não obstante, esse entendimento não prospera. É válida a incidência de juros na venda à prazo, sendo razoável a diferença no preço final do bem para aquele que paga à vista e aquele que optou pelo parcelamento, estando ambos submetidos ao mesmo preço de venda. Nessa linha, há autorização legislativa para a cobrança dos juros nas parcelas do preço de aquisição do imóvel em construção, conforme art. 1º, caput, da lei 4.864/1965.
Ademais, a previsão de juros nas parcelas do preço antes da entrega das chaves consagra a transparência contratual, assegurando o direito à informação que assiste ao consumidor, conforme art. 6º, III, do CDC.
Destarte, sendo facultado ao consumidor a aquisição do imóvel à prazo, é legítima a cobrança dos juros compensatórios, desde que previamente estabelecida no contrato, assegurando-se o equilíbrio financeiro do contrato, que deve ser marcado pela comutatividade das prestações.
Atualização da parcela de chaves
Outro tema que merece atenção, é a discussão acerca da possibilidade de atualização da parcela do preço de aquisição do imóvel, cobrada na entrega da unidade imobiliária, a chamada parcela de chaves.
É comum aos contratos de promessa de compra e venda de imóveis comercializados por incorporadoras a previsão de que a parcela de chaves será atualizada mediante a correção do IGP-M, e, em alguns casos, acrescido 1% (um por cento) de juros mensais.
Nesse caso, não estamos tratando de juros compensatórios, como analisado no item anterior, mas sim de juros remuneratórios, visto que incidentes em caso de atraso no pagamento. Isso porque, estando concluídas as obras de construção do empreendimento, passa a ser devida a parcela final do preço, a qual será corrigida na forma estabelecida contratualmente caso paga a destempo pelo consumidor, sendo este o causador da mora(2).
Também neste caso, deve ser preservado o dever de informação, de modo que o contrato deve trazer expressamente a forma de correção da parcela, bem como o índice de juros eventualmente incidentes pelo atraso.
Retenção de valores em caso de rescisão
Nesse ponto, inicialmente, observe-se que é admitida a resolução da promessa de compra e venda pelo comprador, ainda que este esteja inadimplente. Não obstante, é admitida a retenção de valores pela incorporadora, sob o montante total a ser devolvido ao consumidor, decorrente desta extinção unilateral do contrato.
Encontramos jurisprudência do STJ admitindo que referida retenção de valores alcance o montante de 25% (vinte e cinco por cento) do valor total a ser devolvido ao adquirente(3), entendido tal como percentual razoável, a título de ressarcimento pelas despesas administrativas tidas pelo vendedor com a comercialização da unidade.
É importante observar que a base de cálculo dos percentuais descontados do consumidor deve ser o montante pago por este, e não o valor total do contrato, face à abusividade presente no cálculo de uma penalidade sobre montante superior à quantia a ser efetivamente devolvida ao consumidor(4).
Caso o contrato estabeleça valor excessivo a ser descontado da devolução, este poderá ser reduzido equitativamente pelo juiz, com fulcro no art. 413 do Código Civil. Nessa linha, entende-se abusiva cláusula que estabeleça a retenção integral dos valores pagos em caso de resilição da promessa de compra e venda, visto tratar-se de penalidade excessivamente onerosa para o consumidor, configurado enriquecimento ilícito do vendedor(5). É a chamada cláusula de decaimento, a qual, inclusive, encontra vedação expressa no art. 53 do CDC.
Forma da restituição de valores em caso de rescisão
Tendo sido constatado que é possível a retenção parcial do valor a ser devolvido ao consumidor em caso de resilição unilateral do contrato por iniciativa ou culpa deste, passa-se ao estudo da forma e condições desta restituição.
Prevalece entendimento jurisprudencial de que a devolução de valores não poderá ser condicionada ao término das obras, ou sequer realizada em parcelas(6).
Entende-se ser abusiva a devolução dos valores somente após o término das obras, por retardar o direito do consumidor à restituição da quantia paga, em violação ao art. 51, II, do CDC, além de constituir vantagem exagerada ao fornecedor, conforme art. 51, IV, do CDC. Nesse último ponto, observa-se que a garantia de tal direito ao vendedor, poderia levá-lo a auferir vantagem econômica pelo recebimento de quantia de dois consumidores, caso realizada a revenda da unidade imobiliária, e postergada a devolução dos valores ao consumidor distratante para momento posterior ao término das obras do empreendimento. Outrossim, não se deve olvidar a vantagem já natural da revenda pela valorização do imóvel, como costuma acontecer. É certo que sendo assegurado à incorporadora o direito de disposição do imóvel, através da revenda, também assiste ao consumidor o direito de disposição sobre o montante investido a lhe ser devolvido(7).
No que tange à devolução parcelada dos valores ao consumidor distratante, ousamos discordar daqueles que entendem abusiva referida forma de restituição, por visualizar afronta à equidade. Isso porque, tendo o adquirente realizado em parcelas o pagamento, é razoável que a devolução se dê da mesma forma, sem prejuízo ao fluxo de caixa da incorporadora, o que poderia inclusive afetar os demais consumidores. Esse foi o posicionamento defendido pela Ministra Maria Isabel Gallotti, em voto vista no Agravo Regimental no Recurso Especial nº 997.956/SC.
Por fim, frise-se que a forma de restituição do valor independe de a extinção do contrato ter ocorrido por iniciativa ou culpa de qualquer das partes. Esta análise é pertinente apenas para legitimar a retenção parcial do valor a ser devolvido, o que é admitido se a resilição for decorrente de ato do consumidor.
Comissão de corretagem
Tema que já foi alvo de controvérsia, mas se encontra atualmente pacificado, diz respeito à abusividade na cobrança de taxa de comissão de corretagem nos contratos de compra e venda de imóvel em construção, realizado diretamente com a incorporadora.
Nesses casos, em regra, o consumidor vai espontaneamente ao stand de venda montado pela incorporadora, não havendo negociação prévia entre o adquirente e o corretor que configure a contratação da corretagem por aquele. Em verdade, o corretor é contratado pelo incorporador, o qual impõe ao consumidor o pagamento do serviço que foi prestado àquele.
Situação diversa é daquele consumidor que vai em busca do corretor para que ele realize a busca por um imóvel, e este, no exercício da atividade para a qual foi contratado, conduz o consumidor ao stand de vendas do empreendimento desenvolvido por determinada incorporadora. Nessa hipótese estaria configurada a obrigação do adquirente em arcar com os custos da corretagem. Não é isso, todavia, que ocorre.
Assim, mostra-se abusiva a cobrança por serviço que não foi contratado, visto que o consumidor buscou diretamente o fornecedor, sem que tenha havido real intermediação na venda, pela corretagem. Trata-se de hipótese que se enquadra na previsão do art. 51, III e IV, do CDC, segundo os quais é a abusiva a cláusula que transfira a responsabilidade a terceiro, bem como esteja em desacordo com a boa-fé e equidade, colocando o consumidor em situação de desvantagem exagerada.
A cláusula que imputa o pagamento da comissão de corretagem ao consumidor traz ainda consigo o instituto da venda casada, proibido pela legislação consumerista, conforme art. 39, I, do CDC.
Lembre-se que mesmo que o contrato de promessa de compra venda do bem imóvel preveja expressamente a imputação dos custos da corretagem ao consumidor, estará configurada a abusividade, visto que se tratando de contrato de adesão, não há poder de negociação pelo consumidor, ao qual são impostas as condições do contrato(8).
Ausência de dano moral pelo atraso da obra
A jurisprudência do STJ é firme ao entender que o mero descumprimento contratual não gera direito a indenização por dano moral. Assim é que sendo descumprida obrigação da incorporadora de entregar a unidade na data acordada, não pode ser concluída pela imediata existência de direito do consumidor a reparação civil por danos morais, os quais dependem de prova da sua existência(9).
É certo que o atraso na entrega do imóvel gera desconforto ao adquirente, entretanto tal não é o bastante para configurar o dano moral, assim entendido como o sofrimento exacerbado, por ofensa anormal à personalidade(10). O STJ entende que a reparação material, mediante devolução integral das parcelas pagas é suficiente para reparar a mora da incorporadora.
Assim, enquanto nas hipóteses em que a extinção do contrato decorre de inadimplemento ou solicitação do consumidor é autorizada retenção parcial do valor a ser devolvido ao adquirente, quando resta configurada a mora da incorporadora, o ressarcimento ao consumidor deve ser integral, a fim de sanar o dano patrimonial sofrido por este.
O dano moral, por sua vez, não será presumido, dependendo de prova, no caso concreto, de que o atraso na entrega da unidade gerou dor e sofrimento desproporcionais ao consumidor, evitando-se a banalização de instituto jurídico tão importante.
Pelo exposto, observamos que a relação de consumo formada entre o incorporador e o adquirente de unidade imobiliária obriga aquele a respeitar o microssistema de defesa do consumidor em suas relações com referidos compradores, tanto na elaboração das clausulas contratuais, quanto nas práticas comerciais de um modo geral. Nessa linha, o Superior Tribunal de Justiça tem merecido aplausos pela razoabilidade de grande parte dos entendimentos que adota acerca da aplicação da legislação consumerista aos contratos de compra e venda de imóvel por incorporação, visto estarem sendo preservadas as peculiaridades do negócio, sem desrespeito à vulnerabilidade do consumidor.
(1) Vale trazer a definição de incorporador, prevista no art. 29 da lei nº 4.591/1964: “Art. 29. Considera-se incorporador a pessoa física ou jurídica, comerciante ou não, que embora não efetuando a construção, compromisse ou efetive a venda de frações ideais de terreno objetivando a vinculação de tais frações a unidades autônomas, (VETADO) em edificações a serem construídas ou em construção sob regime condominial, ou que meramente aceite propostas para efetivação de tais transações, coordenando e levando a têrmo a incorporação e responsabilizando-se, conforme o caso, pela entrega, a certo prazo, preço e determinadas condições, das obras concluídas”.
(2)Nesse sentido, confira: AgRg no AREsp 3470/DF.
(3)Nesse sentido, confira: REsp 838516/RS.
(4)Nesse sentido, confira: REsp 907856/DF.
(5)Confira: REsp 1132943/PE.
(6)Confira: REsp 1300418/SC.
(7)Vale ressaltar que nem sempre foi este o entendimento do STJ, existindo julgados antigos no sentido de que a devolução dos valores poderia ocorrer na data estipulada no contrato para o término das obras, não cabendo ao consumidor, entretanto, arcar com o ônus de eventual atraso na conclusão do empreendimento. Nesse sentido, confira: REsp 619531/SC.
(8)Conferir: AREsp 350052.
(9)Conferir: REsp 592083/RJ.
(10)Confira REsp 1129881/RJ. Fonte:Torres e Pires Advogados Associados